12.13.2005

pesadelo sub urbano

Maria da Conceição trabalha no Hospital Santa Maria, no refeitório. Cozinha. Já tem prática. Duas filhas do primeiro casamento, do segundo nada criou, melhor assim, velha demais para aquelas andanças, para as noitadas leito-leite, das fraldas cheias de merda que lhe cabiam a ela lavar.
É muito bonito ter filhos.
Ah, pois é, ah, pois é...
Maria tem já uma pele velha, feia e seca.
Tem uns poucos quarenta e dois anos, idade bonita: já se é mãe, já se tem casa, marido.
Maria vive num apartatamento, designação pomposa, arrendado.
Umas quantas assoalhadas que servem o propósito de acomodarem duas filhas num quarto cujos poucos metros quadrados se deixaram tapar por um beliche, cómoda e roupeiro de duas portas.
Há uma sala com mesa de jantar, dinheiro mal gasto.
Não o foi o que empaturrou na televisão e video.
Não parece haver outro alento para maria:não perde um filme género folhetim-relato-da-vida-real.
A desgraçadinha que é violada pelo pai, esfaqueada pela mãe e tem o fiscal da segurança social à perna apenas porque trabalhava e recebia subsidio de desemprego ao mesmo tempo; a pobre, não apenas pobre de espirito, mas realmente e financeiramente - mas também (era inevitável?) espiritualmente, pobre mulher, que pobre no verdadeiro sentido da palavra, coitada mora nas barracas e têm 18 filhos de pais diferentes, porque também tem direito á felicidade, coitada, mas não pode usar a pilula porque a igreja não tolera.
Isso sim, Maria não gosta mesmo nada é das histórias inventadas, com imaginação, uma ficção intelectual que não tem aquela hipocrisia de se auto-intularem "baseadas em vidas reais".Maria tem um marido que não lhe bate, que não a maltrata e até a ajuda ás vezes a tirar a roupa do arame; as filhas, uma estuda e a outra está empregada, ali numa recepção do laboratório de analises clinicas, dá frasquinhos aos senhores para eles irem fazerem chi-chi e olha de lado para as meninas que vão fazer certas analises.
Maria não tem grandes maleitas, nem estudos, o que nem sempre é mau, quanto menos se sabe da vida menos se lhe sente o salgado. Mas ela sente o escorrer dos dias ensonso e dá por si a recriminar-se de não ser feliz.
Maria gosta de ver TV, anda à procura de alguém que esteja mais abaixo do chão do que ela.
1999